Recentemente têm sido divulgados artigos na mídia sobre a participação da MMGD (micro e minigeração distribuída) nos cortes de geração que as eólicas e solares centralizadas vêm sofrendo devido às restrições de escoamento de sua geração conhecido como curtailment.
Coloca-se desta forma que a culpa total ou parcial desses cortes é devido à diminuição da carga proporcionada pela MMGD.
Para analisar esta questão, vamos voltar ao passado e entender porque chegamos a esta situação e posteriormente buscar quem seriam os responsáveis pelo prejuízo que chegou a mais de um bilhão de reais no ano de 2024 aos geradores renováveis principalmente na Região Nordeste.
A reforma da década de noventa
Ao final da década de noventa, o Brasil passou por uma reestruturação do setor elétrico onde se buscou incentivar a competição através da adoção de uma economia de mercado que já havia sido implantada em vários países.
A ideia básica para viabilizar toda a transformação foi separar as atividades de geração e comercialização das atividades de transporte que são intrinsecamente monopolistas.
O transporte representado pela transmissão e distribuição da energia transacionada no mercado passou a ser totalmente regulado pela ANEEL (Agência Nacional de Energia Elétrica) e o planejamento deste segmento foi definido pelo governo através do MME (Ministério de Minas e Energia) via EPE (Empresa de Pesquisa Energética).
Aqui temos o primeiro ponto importante: diferente do modelo estatal anterior onde a expansão da rede era feita de forma concomitante com a expansão da geração, no novo modelo, a geração passa a ser implantada através de decisões dos agentes no mercado, enquanto a transmissão continua a ser definida pelo governo se materializando através dos leilões de transmissão.
Na distribuição, a responsabilidade de expansão continuou sendo das distribuidoras. Enquanto estávamos dependentes das usinas térmicas e hidráulicas de grande porte com tempo de implantação longo, o governo conseguia expandir a rede elétrica para atender as necessidades do segmento de geração em tempo hábil. Este ambiente muda completamente a partir do aparecimento das usinas renováveis.
Um segundo ponto que diferencia o Brasil de outros países que passaram pela mesma reestruturação, é que os agentes são responsáveis pelas obras de conexão até as subestações mais próximas pertencentes à rede de transmissão (rede básica) ou à rede de distribuição, o que denominamos de “shalow connection”.
A identificação e instalação das obras necessárias para o escoamento da nova energia é do governo brasileiro o que difere de outros países onde a participação dos agentes vai além da subestação, ou seja, denominado de “deep connection”.
No deep connection há um processo de internalização aos agentes de geração da dinâmica da expansão da rede sendo, portanto, corresponsáveis pela definição e pelo custo associado de toda a rede necessária para atender o escoamento da energia.
Para contornar este problema, a sinalização destes custos passou a ser feita, no Brasil, através da TUST (Tarifa de Uso da Transmissão) e da TUSD (Tarifa de Uso da Distribuição) com um sinal locacional inserido.
No entanto, este sinal tem sido muito fraco, não cumprindo o seu objetivo de sinalizar aos agentes que mais usam a rede dos custos envolvidos. Recentemente, a ANEEL através da Resolução Normativa 041/2022 vem corrigindo este problema, mas mesmo assim não com a intensidade desejada face às dimensões continentais do Brasil.
Um terceiro ponto é a forma como o preço da energia é formado no Brasil. Diferente do que acontece na maioria dos países, o preço (PLD) é definido por um programa computacional de otimização energética que criou um condomínio para minimizar o risco hidrológico através do MRE (mecanismo de realocação de energia).
Neste condomínio é oferecida uma garantia física pelo governo em que cada agente de geração pode negociar a sua energia limitada a este valor.
Podemos dizer que, indiretamente, temos um mercado separado do mundo físico, onde a otimização é feita e os despachos das centrais determinados pelo ONS (Operador Nacional do Sistema Elétrico), do mundo contábil onde são feitas as negociações de compra e venda de energia.
Para complicar a liberalização do mercado, o governo cria o mercado regulado (ACR) em 2004 onde os consumidores com potência menor que 3 MW são obrigados a participar de uma compra de energia conjunta realizada pelo governo.
Em resumo, há um distanciamento dos agentes de geração e principalmente dos agentes de consumo dos efeitos da operação e planejamento do sistema que são tratados pelo governo.
Os riscos acabam sendo mal distribuídos refletindo numa série de distorções que acabam trazendo prejuízos aos agentes com um processo de judicialização crescente.
A competição via mercado de oferta e demanda acabou não sendo concretizada. Em outros países, o mercado de energia, incluindo o mercado varejista, não sofreu o revés ocorrido em 2004 no Brasil e vem sendo aprimorado desde então.
Incentivo às renováveis
Neste ambiente, no final da década de dois mil, aparecem os incentivos à geração renovável começando pela energia eólica. O problema destas usinas é que não são despacháveis e acabam não se encaixando no modelo de condomínio até então utilizado.
Enquanto elas eram marginais e, literalmente, abatiam carga da principal região onde se instalaram fortemente, a Região Nordeste, o sistema convivia pacificamente com as hidráulicas e térmicas aliviando a intermitência.
Além disto, incentivos como o pagamento de metade da TUST que perduram até hoje, a falta de um sinal locacional consistente na transmissão e a diminuição dos custos de implantação desta geração acabou acelerando vertiginosamente a oferta de energia eólica na região fazendo com que esta região passasse a ser uma grande exportadora de energia.
Em meados da década de 2010, aparecem as usinas solares com o barateamento das placas solares e inversores. Estas usinas, também intermitentes, têm uma vantagem importante quando comparadas com as outras formas de conversão de energia.
São estáticas e flexíveis podendo ter capacidades variando de 1 kW a 1 GW o que acaba dando oportunidade ao pequeno consumidor de possuir sua própria geração.
Este pequeno consumidor acaba se libertando parcialmente das amarras do mercado regulado que impõe preços elevados na tarifa de energia.
Esta revolução na estrutura como o setor elétrico vinha sendo trabalhado, ou seja, grandes centrais geradoras conectadas à carga através de sistemas de transmissão e distribuição, acaba sendo contestada.
Nos países onde o mercado de energia já estava bem estruturado, estas mudanças tecnológicas na geração de energia vêm sendo absorvidas com mais clareza e mais bem sinalizadas aos agentes do setor.
No Brasil, onde a centralização e o distanciamento dos agentes ao funcionamento do setor acabaram trazendo uma série de distorções. Para tentar resolver, o governo interfere nas interações entre os agentes, cria subsídios, age como regulador, etc.
Podemos afirmar que existe um problema estrutural no modelo brasileiro que se agravou com a entrada das novas modalidades de energia renovável.
Desafios à operação e ao planejamento
No mundo físico da operação da rede, o ONS vem priorizando o despacho das eólicas e solares porque estas usinas, apesar de terem uma garantia física, não fazem parte do condomínio das hidráulicas e térmicas visto que elas não têm a controlabilidade no seu despacho.
Isto vinha funcionando bem enquanto o montante desta geração intermitente era pequeno e as restrições elétricas de transferência da energia do nordeste para o sudeste não eram significativas.
O panorama muda em função da velocidade do crescimento das usinas renováveis e do evento de 15 de agosto de 2023.
Este crescimento acaba minimizando a capacidade de amortecimento dos efeitos da intermitência pelas hidráulicas e térmicas e o blackout mostrou uma realidade onde os modelos de simulação computacional indicavam restrições de transferência de energia aquém do necessário.
Segundo o diretor geral do ONS na época, esta perturbação acabou sendo um “divisor de águas” para a operação da rede, pois a forma tradicional de operar não mais se adequava à nova realidade.
Em função desta nova dimensão, o ONS vem cortando geração (curtailment) por razões de indisponibilidade de rede, de confiabilidade e de energia conforme determina a Resolução Normativa 1030/2022 da ANEEL.
Na primeira, existe uma compensação financeira para os geradores, mas nas duas últimas os geradores arcam com os prejuízos. O corte por confiabilidade representou em 2024 cerca de 65 % e o corte por energia cerca de 25% com prejuízos totais chegando a 1 bilhão de reais.
Esta situação deverá perpetuar apesar da entrada de novas linhas de 500 kV na proximidade da SE Açu III que representa hoje um gargalo na Região Nordeste principalmente depois do apagão de 15 de agosto.
Para buscar a responsabilidade do curtailment atual, podemos analisar os dois tipos de corte que não são reembolsados pelo sistema.
Corte por Confiabilidade
A confiabilidade da rede é medida por critérios definidos pelos procedimentos de rede do ONS aprovados pela ANEEL. Muitos destes critérios vêm de décadas anteriores construídos pelas empresas do grupo Eletrobrás.
Um critério básico é que a rede deve continuar operando quando da perda de um elemento como linha de transmissão, transformador ou maior unidade geradora (critério N-1).
Em resumo, o sistema deve suportar a dinâmica da passagem de um ponto de operação para o outro sem perder sincronismo e com oscilações amortecidas de frequência e tensão.
Esta dinâmica é verificada através de programas que simulam o fluxo de potência e a estabilidade eletromecânica (ANAREDE, ANATEM e ORGANOM).
É importante mencionar que eles representam a rede de transmissão e os geradores, podendo chegar no máximo às redes de 138 kV.
Com o evento de 15 de agosto, o ONS no seu RAP (relatório de análise da perturbação) concluiu que os modelos informados pelas usinas eólicas e solares não estavam representando a realidade de resposta nestes programas e que com isso as restrições impostas aos fluxos de transferência de energia principalmente entre o Nordeste, Norte e Sudeste estavam muito relaxados.
Como exemplo, o ONS acabou passando o total de exportação permitido para a região NE (ExpNE) de 13 GW para 8 GW no dia seguinte ao evento.
A concentração da geração centralizada em determinada região sem o sistema correspondente para escoar a energia gerada acaba trazendo as restrições. Esta situação acontece devido ao atraso na expansão da transmissão conforme apontado anteriormente.
Além disso, a falta da controlabilidade da geração renovável tanto pela concentração da geração em determinados períodos do ano e horários do dia como também na resposta dinâmica da geração a distúrbios na rede acabam aumentando os cortes de geração determinados pelo ONS.
Pode-se observar que todo o problema ocorre na transmissão em função da concentração de geração eólica e solar centralizada. Não podemos culpar a MMGD que está localizada nas redes de média e baixa tensão da distribuidora por um problema na dinâmica da rede de transmissão.
Ao analisar a ocorrência de 15 de agosto e a motivação do corte, verifica-se que houve a necessidade de um suporte de reativo para evitar a queda abrupta de tensão. O ONS está programando a instalação de um compensador síncrono para prover reativo e potência de curto-circuito para diminuir o “curtailment”.
A MMGD não conseguiria prover potência reativa à rede de transmissão mesmo com um sinal adequado pois sua distância elétrica é grande visto que está localizada nas redes com tensões bem mais baixas. Elas não são, portanto, responsáveis pelas condições no sistema de transmissão que levaram ao evento de 15 de agosto.
Outro ponto importante é que os riscos associados à transmissão deveriam ser alocados aos agentes que estão aumentando o fluxo nas redes em determinados horários devido até ao seu baixo fator de capacidade.
Corte por Energia
Outro motivo para o corte é o balanço energético que em determinados horários, quando há excesso de geração, é necessário diminuir o despacho das centrais. O ONS vinha acertando este desbalanço utilizando o armazenamento hidráulico, ou seja, diminuindo os despachos das centrais hidrelétricas para armazenar energia.
Como as usinas hidráulicas participam do MRE, entende-se que este bloco acaba operando em conjunto para compensar a falta da despachabilidade das renováveis. Com o aumento da geração eólica e solar, a capacidade de armazenamento vem diminuindo havendo a necessidade de corte de geração por energia.
Como a MMGD diminui a carga do sistema, o problema do corte de geração das novas usinas renováveis acaba se agravando. Há, portanto, uma diminuição da carga, pois o consumidor opta a construir a sua própria geração aproveitando da flexibilidade da geração solar diminuindo a sua dependência da rede e dos custos elevados da conta de energia.
O consumidor está, a princípio, abatendo a sua própria carga no local da sua geração, como é o caso da microgeração que hoje representa mais de 70% dos casos.
Para a minigeração, boa parte acaba abatendo carga da própria região utilizando a rede de média tensão (MT), ou seja, neste caso há um consumo na própria região minimizando o uso das redes pela miniusina.
Como não é factível cortar fisicamente a geração dos prossumidores neste momento, estão propondo fazer um corte contábil, ou seja, alocar financeiramente parcela do curtailment na MMGD.
Este tipo de solução acaba sendo injusto pois o consumidor ao fazer uso de sua própria geração está na realidade se libertando da condição de cativo onde é obrigado a pagar pelos desequilíbrios estruturais do modelo atual do setor elétrico brasileiro.
Hoje, o pequeno consumidor não tem a possibilidade de atuar no mercado livre de energia (ACL) e as tarifas de transporte (TUSD) estão completamente defasadas, não sinalizando os benefícios da MMGD.
Conclusão
Uma série de dificuldades vividas no setor elétrico brasileiro é fruto de um modelo mal desenhado onde há um distanciamento dos agentes com a realidade da operação e do planejamento.
Isto tem motivado a criação de um conjunto de regulamentação pelo governo que muitas vezes distancia da eficiência e da alocação justa dos custos de benefícios dos agentes.
Como consequência da fragilidade da regulação atual, as tarifas e os custos do setor acabam sendo alocados entre os agentes através da ação direta do poder legislativo e executivo ou até, mesmo, do judiciário. Este “bypass” do regulador não é o caminho mais correto para se ter um ambiente estável e confiável para investimentos.
Em outros países, onde o mercado de energia realmente é atuante, sempre se busca uma solução com a participação dos agentes e não tem sido diferente na acomodação das usinas renováveis.
Incentivos são dados à descarbonização tanto para as eólicas e solares, mas sempre utilizando mecanismos de financiamento, tributação ou pagamento direto como o IRA nos EUA.
Tirar a liberdade do consumidor ao penalizá-lo por investir na sua autoprodução renovável não parece ser coerente e nem justo pois ele não é culpado pelo desequilíbrio atual do setor. A MMGD não se exime de pagar a TUSD desde que haja uma sinalização correta observando as vantagens locacionais.
Por José Wanderley Marangon Lima para a Folha
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