Eduardo Martins, que não tem experiência no setor elétrico ou em conselhos, foi vice-presidente de construtora de mega condomínio em reduto eleitoral do ministro
A crise provocada pelo apagão que deixou milhões de pessoas sem luz em São Paulo fez o ministro de Minas e Energia, Alexandre Silveira, pesar o tom contra a italiana Enel, acusando a distribuidora de “burrice” e cobrando da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) a abertura de um processo administrativo contra a concessionária. Mas a relação do ministro com a companhia nem sempre foi de conflito, pelo contrário. Nos últimos meses, Silveira teve uma série de encontros com executivos da Enel na Itália e no Brasil. E, há quatro meses, a Enel Brasil contratou para presidir seu conselho de administração um empresário próximo do ministro, Eduardo Martins.
Martins, que foi executivo das empreiteiras Egesa e Mendes Júnior, se aproximou de Silveira na década de 2010, quando a Egesa construiu na cidade mineira de Caratinga, base eleitoral de Silveira, um condomínio de grande porte que ficou conhecido como “Alexandria”, em referência ao empenho do então deputado federal para colocá-lo de pé.
O executivo assumiu o cargo no conselho da holding que comanda as distribuidoras da Enel em três estados brasileiros no dia 10 de julho.
Um mês antes, em 15 de junho, Silveira e o presidente Luiz Inácio Lula da Silva tiveram uma reunião com o CEO global da companhia, Flávio Cattaneo, durante o encontro dos países do G7. Tiraram fotos em sorridentes apertos de mão, e Lula saiu do encontro dizendo que o Brasil estava disposto a renovar a concessão da Enel, que vence em 2028, se a empresa se comprometesse a ampliar os investimentos no país de R$ 11 bilhões para R$ 20 bilhões — o que os italianos confirmaram.
No dia 12 de julho, Silveira e os executivos da Enel ainda voltariam a se encontrar em um almoço entre Lula e o presidente da Itália, Sergio Mattarella, no palácio do Itamaraty.
Diferentemente das distribuidoras, que têm capital aberto e vendem ações em bolsa, a Enel Brasil é uma holding controlada diretamente pelos italianos. A equipe da coluna ouviu de duas fontes a par do assunto que a contratação de Martins foi motivada pela ligação com Silveira, que o teria indicado. O ministro e o executivo negam. Questionada a respeito, a Enel Brasil se houve ou não indicação. Disse apenas que ele “tem experiência comprovada no setor de infraestrutura”.
Segundo o próprio presidente do conselho disse em entrevista por telefone, a decisão de contratá-lo foi de Antonio Scala, italiano que é CEO da companhia no Brasil.
Martins admite que não tem experiência no setor elétrico e nem de participação em conselhos – o da Enel é o primeiro que ele assume. Ele diz ter enviado seu currículo à distribuidora por meio de amigos de Minas Gerais que vivem em São Paulo, que nada teriam a ver com Silveira. Um desses amigos seria um sobrinho que trabalha para uma consultoria que presta serviços à concessionária de energia.
“Eu os procurei e a princípio imaginava que poderia contribuir na área de gestão, apresentei meu currículo e gostaram muito. Mas, para uma pessoa da minha idade (74), entenderam que precisava ser na área de conselho”, disse o executivo. “Eles ficaram muito interessados e gostaram muito do meu currículo, que é realmente muito, muito interessante”.
Já o ministro Silveira nega ser amigo de Martins – “nunca frequentou a minha casa” –, mas diz que o conhece bem, o admira muito, e o descreve como “um dos maiores engenheiros do Brasil” e detentor de um “currículo espetacular”. “A pessoa está distribuindo currículo e pode até dizer que é meu amigo… Mas eu não indiquei ninguém”.
A relação de Silveira e Martins remonta ao período em que o ministro era deputado federal pelo PSD em Minas Gerais e transformou em bandeira de seu mandato a construção do condomínio Parques do Vale, um gigantesco complexo residencial entre as cidades de Caratinga e Ipatinga, no Vale do Aço.
O ministro começou a articular a viabilização do mega condomínio em 2008 na gestão do governador Aécio Neves (PSDB), ajudando na obtenção de licenças e autorizações. Na época, a imprensa local divulgou que foi Silveira quem articulou para que a Egesa, da qual Eduardo Martins era vice-presidente, assumisse a obra.
O empreendimento acabou naufragando e até hoje está inacabado. Martins contou à equipe da coluna que deixou a Egesa em 2013.
Em 2012, ele foi citado por delatores da Camargo Corrêa em uma colaboração firmada com o Ministério Público Federal (MPF) e o Cade entre os executivos que fariam parte de um cartel de obras de ferrovias, como vice-presidente da Egesa e como sócio da CMT, uma empreiteira da qual ele também era acionista.
Anos mais tarde, em 2016, seu nome surgiu em outra delação. Desta vez, foi o doleiro Alberto Youssef quem declarou ter se reunido com Martins e o então deputado José Janene (PP) para negociar uma propina de R$ 360 mil em troca de contratos na Petrobras.
Nos dois casos, os processos foram arquivados. Martins nega as acusações, diz que as delações são mentirosas e afirma que a Lava-Jato foi uma “palhaçada” movida por “interesses políticos”.
“Passei os últimos anos lidando com esses processos”, conta ele, que em 2019 assumiu uma diretoria na empreiteira paulista Sanches Tripoloni, onde ficou até fevereiro de 2024.
Silveira, por sua vez, diz que não conhecia o conteúdo das delações contra o atual presidente do conselho da Enel. “Não sabia e nunca tive nenhum tipo de envolvimento com qualquer coisa com o senhor Eduardo Martins”.
Escolha discreta
Realizada num momento conturbado, quando a Enel foi obrigada a trocar todo o seu comando para tentar responder à crise provocada por dois apagões – o primeiro, de grande porte, em 6 de novembro de 2023, e o segundo, de menor impacto, em 18 de março de 2024 –, a contratação de Eduardo Martins para o conselho não foi noticiada. Seu currículo também não está disponível no site da companhia.
Como a Enel Brasil é uma empresa fechada, a ata da reunião em que Martins foi escolhido também não é pública. Questionada, a distribuidora também não informou qual a remuneração do presidente do conselho. Também não respondeu se tinha conhecimento de que o executivo tinha sido citado em delações premiadas, ou se o currículo dele chegou a ser submetido a uma verificação de conformidade.
O empresário disse à equipe da coluna que pretende trabalhar em outros conselhos de empresas, mas não tem perfil ativo nem no LinkedIn ou em outras redes sociais.
Um dos raros registros dele nas redes foi publicado no Instagram no mês passado por Anderson Franco, empresário que foi chefe de gabinete de Silveira em Brasília, quando o ministro era deputado federal. Em um vídeo postado em seus dois perfis, Franco destacou sua participação em um seminário da Enel, que também contou com a presença de Silveira, e chamou Martins de “grande amigo de longa data”.
Apagão de 2023
A pressão sobre o governo federal pela crise em São Paulo ocorre tanto pela reincidência do blecaute quanto pelo momento político, em plena campanha pelo segundo turno da eleição municipal.
No último final de semana, depois de uma forte tempestade com rajadas de ventos de mais de 100 km/h, a capital e outros 23 municípios atendidos pela Enel ficaram sem luz, em um cenário de caos que afetou mais de 3 milhões de clientes.
Na segunda-feira seguinte (14), no debate da Band, o prefeito Ricardo Nunes (MDB), foi duramente cobrado por Guilherme Boulos (PSOL) pela suposta incapacidade de sua gestão em reagir aos efeitos do apagão que afligiu a cidade.
Uma das dificuldades alegadas pela Enel para resolver a crise rapidamente é o excesso de árvores caídas sobre a rede elétrica. A poda de árvores é responsabilidade do município. A prefeitura, por sua vez, acusa a Enel de não fazer a sua parte, cumprindo a sua própria meta de podas e desligando a rede com presteza após o apagão para possibilitar a remoção das árvores sobre a fiação.
Em resposta a Boulos no debate, Nunes disparou contra o candidato de Lula ao declarar que “seu ministro” – Silveira – não havia tomado medidas enérgicas contra a Enel. Isso mesmo com o PSD do titular de Minas e Energia fazendo parte da coligação de sua chapa à reeleição.
Depois disso, Silveira reagiu, acusando Nunes de divulgar fake news e exigindo da Agência Nacional de Energia Elétrica que abrisse um processo de intervenção contra a Enel.
O ministro também foi pessoalmente à São Paulo para reuniões com a empresa e a Aneel – e acusou a agência de omissão quanto à abertura de um processo administrativo contra a concessionária determinada pelo MME por ofício em abril deste ano.
Mudança de postura
No apagão vivido em São Paulo em novembro de 2023, quando cerca de 2 milhões de clientes ficaram no escuro na capital e em 23 cidades da Região Metropolitana após uma tempestade com fortes vendavais, o ministro se comportou de forma bem diferente.
Diante da repercussão da crise, Silveira criou uma sala de situação na sede da pasta em Brasília. O Ministério de Minas e Energia, posteriormente, emitiu nota responsabilizando os governos Michel Temer e Jair Bolsonaro que, na avaliação do governo Lula, promoveram “privatizações de maneira negligente com o setor elétrico”, sem fustigar a Enel. A concessionária assumiu a concessão paulista em 2018, após comprar a AES Eletropaulo.
Silveira cobrou da Aneel uma apuração sobre o apagão de 2023 sem o mesmo vigor deste ano. A agência posteriormente concluiu ter havido demora da Enel em mobilizar equipes e o descumprimento de parâmetros de qualidade e, por esse motivo, aplicou multas que somam R$ 260 milhões. Também exigiu de todas as distribuidoras de energia brasileiras a apresentação de planos de contingência para eventos climáticos extremos. A Enel apresentou seu plano no mês passado, mas ainda contesta a penalidade na Justiça.
No último dia 11, horas antes da tempestade com ventanias de 100km/h em São Paulo que derrubaram mais de cem árvores, Silveira participou de um painel ao lado de um diretor da Enel e sugeriu, em tom amistoso, que a empresa poderia se encaixar no decreto que permite a renovação antecipada das concessões das distribuidoras, desde que ela se adequasse às novas regras da regulação. Para os italianos, tudo parecia correr bem. Mas a tempestade mudou o cenário, algo que o próprio presidente do conselho da Enel Brasil reconhece.
“É uma pena porque estão batendo em uma empresa séria, os italianos estão querendo investir no Brasil”, diz Martins. “Não pode politizar como estão politizando”.
Leia abaixo a íntegra da nota da Enel:
A Enel Brasil informa que os membros do Conselho de Administração das companhias do Grupo Enel, no cargo de conselheiros, não exercem função executiva. São escolhidos pela sua representatividade na sociedade civil, pela atuação em diferentes segmentos da economia e áreas da empresa.
Eduardo Martins, nomeado presidente do Conselho de Administração da Enel Brasil em 10 de julho, tem experiência comprovada no setor de infraestrutura, essencial para uma empresa de energia.
Sobre as reuniões com representantes do governo, cabe esclarecer que executivos da empresa mantêm contatos regulares com autoridades em todos os locais em que atua.
Fonte: Malu Gaspar – O Globo
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