PL que prevê mercado livre de energia ganha força no Congresso

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Prioritário para o governo e para o setor, projeto permite que consumidores escolham fornecedor de eletricidade

Mais mudanças podem estar no horizonte do setor elétrico, com a discussão sobre uma abertura ampla do comércio de energia no mercado livre. O tema é discutido em projetos de lei e ganhou comissão especial na Câmara dos Deputados, mas já se viu cercado de polêmicas antes mesmo do início dos trabalhos.

A discussão sobre essa abertura vem ganhando força desde o ano passado com exigência de reduzir custos em meio à mais recente crise no setor elétrico, que encareceu as contas de luz. As turbulências na geração hidrelétrica vieram acompanhadas de expansão no mercado livre de energia, que tem a intenção de dar mais poder de barganha aos consumidores. Esse avanço somou, junto com a geração distribuída, para um aumento recorde na capacidade instalada de fontes eólica e solar, observado em 2021.

Na prática, o que se discute sobre a abertura do mercado é ampliar o acesso ao mercado livre de energia para todos os consumidores – inclusive os residenciais. Nesse sistema, atualmente restrito aos grandes consumidores, como indústrias e shoppings, a energia não precisa ser comprada diretamente das distribuidoras. Quem opta por ele, pode fechar contratos mais previsíveis com fornecedores escolhidos, sem reajustes gerais a cada ano.

“O modelo não é incomum, inclusive é usado na Europa e em parte dos Estados Unidos. Mas seria uma mudança grande em relação ao brasileiro, em que o serviço de eletricidade é garantido por distribuidoras, que são também comercializadoras reguladas. Por isso, é preciso cuidado com a transição e como os diferentes custos e encargos serão compartilhados”, avalia Roberto Brandão, pesquisador sênior do Grupo de Estudos do Setor Elétrico da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

A ideia é discutida em dois projetos de lei (PLs) na Câmara dos Deputados. Está em desvantagem o PL 1917/2015, apesar de ter sido aprovado por uma comissão especial criada para discutir o tema ainda em 2018. Ele tramita em caráter conclusivo (sem necessidade de passar pelo plenário), então seguiria direto para o Senado.

Tem mais força o PL 414/2021, originado de um projeto do Senado aprovado no início do ano passado. No início deste mês, foi instalada comissão especial para discuti-lo na Câmara, sob relatoria do deputado Fernando Coelho Filho (UB-PE), que chegou a ser ministro de Minas e Energia no governo de Michel Temer. A essência dos projetos é semelhante, mas esse último tem a preferência da pasta e de grande parte do setor.

Esse projeto está na agenda de prioridades do governo para este ano. “A pressão de custos que todos nós estamos vivenciando deve contribuir para sensibilizar o Congresso sobre a importância da aprovação desse marco legal. O PL já tem amadurecimento necessário para ser aprovado”, comentou a secretária-executiva da pasta, Marisete Pereira, em fala na semana passada no Encontro Nacional dos Agentes do Setor Elétrico, no Rio de Janeiro.

Ao mesmo tempo, representantes do setor pressionam para que a votação aconteça antes do recesso legislativo. O Fórum das Associações do Setor Elétrico, que reúne 27 grupos, incluindo representantes de distribuidoras e geradoras, defende que o projeto tem potencial de reduzir os preços da energia e modernizar o setor.

Porém, a entidade chamou atenção, em manifestações nos últimos meses, para os “riscos recorrentes” que a inclusão de jabutis poderiam representar ao projeto. Os mais flagrantes seriam as propostas de recontratação de termelétricas, que representam custos altos, e a construção de gasodutos subsidiados.

A referência é ao escândalo, exposto pelo Estado de S. Paulo em maio, de que haveria planos para direcionar R$ 100 bilhões do lucro com a exploração do pré-sal que teriam como destino o Tesouro Nacional para a construção de gasodutos. A articulação de membros do Centrão seria para incluir um jabuti no PL 414/2021 com o plano. O principal beneficiado, segundo a reportagem, seria o empresário Carlos Suarez, que tem exclusividade de distribuição de gás em oito estados.

Se a ideia era incluir esse jabuti durante votação em regime de urgência, o que acabou não acontecendo, a criação de uma comissão poderia aumentar as resistências a esse tipo de alteração.

Com base nos textos presentes, uma das principais diferenças entre os projetos é o prazo para que o mercado livre de energia chegue para todos os consumidores: no PL nascido na Câmara, seriam 72 meses, enquanto no PL 414/2021 seriam 42 meses desde a edição da lei — em substitutivo preliminar do deputado Fernando Coelho Filho que chegou a circular, esse prazo seria mantido.

Nesse período, a abrangência seria escalonada para alcançar consumidores que demandam baixa carga de energia. Eles seriam representados por empresas varejistas na Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE), onde a venda é negociada com geradores.

Mercado livre de energia em expansão

Defendida como capaz de modernizar e dinamizar o setor, a abertura do mercado livre de energia é a menina do olhos dos comercializadores e outros agentes da cadeia, ao abrir a possibilidade de atender número ilimitado de consumidores — por vezes, insatisfeitos com o que pagam e dispostos a migrar.

“Hoje, há alternativas mais baratas do que as contratadas em longo prazo. É fundamental passar por esse processo para dar um leque de opções à população, que poderá escolher”, diz Bernardo Bezerra, diretor de Inovação, Produtos e Regulatório da Ômega Energia. A comercializadora é uma das entusiastas da pauta e, inclusive, lançou um movimento publicitário pela “libertação” com defensores famosos.

A mudança discutida no Congresso chega em meio a novos investimentos em empreendimentos que serão responsáveis por 72% da capacidade de geração adicional no sistema entre 2021 e 2025, segundo cálculos da Associação Brasileira dos Comercializadores de Energia (Abraceel). Assim, o crescimento da carga deixou de depender de leilões.

No lado da demanda, até novembro, a CCEE contabilizava 9.750 clientes que buscam alternativas para o consumo de energia, um aumento de cerca de 16% em relação ao mesmo mês de 2020. Já em 2015, o número era cinco vezes menor. Porém, 88% dos consumidores atuais não são caracterizados exatamente como livres, apesar de não comprar de distribuidoras, e sim especiais.

Eles têm demanda menor do que o restante (inicialmente estipulada entre 500 kW e 1 MW) e só podem adquirir energias incentivadas, como as de fontes eólica, solar, térmica por biomassa ou produzida nas Pequenas Centrais Hidrelétricas (PCHs). O consumidor que opta por essa fonte tem descontos na transmissão da energia e paga em separado pelo serviço da distribuidora.

Essa categoria de consumidores especiais deve deixar de existir em 2023 e a tendência é que migrem para o mercado livre de energia mais amplo. Desde o ano passado, está em andamento um plano instituído pela Portaria 465/2019 do Ministério de Minas e Energia.

Em janeiro deste ano, os consumidores com demanda por carga de 1 MW passaram a poder optar pela compra de qualquer comercializador ou concessionária (antes, mínimo era de 1,5 MW). No próximo ano, o piso cai para 500 kW. Com a possibilidade de os consumidores especiais aderirem, apenas os que já não acessam hoje ficariam de fora.

Atingindo o varejo

Assim, a discussão é, em última análise, sobre como efetivar a abertura para quem está abaixo dos 500 kW, já que o restante já está passando por esse processo. No PL 414/2021, eles são tratados como consumidores varejistas.

O projeto prevê que, no período de transição estipulado, o Executivo deve apresentar um plano para separar as atividades de comercialização regulada de energia e a prestação do serviço de distribuição. Essa seria uma transição em relação ao modelo atual e empresas que atualmente fazem as duas etapas poderiam se reorganizar dessa forma.

Haveria ainda a separação de tarifas do fornecimento de energia e da distribuição, atualmente pagas em conjunto (é a chamada tarifa monômia, em contraste à binômia, que é proposta). Por esse modelo, a Aneel definirá as tarifas de uso dos sistemas de transmissão e distribuição.

O fornecimento de energia elétrica não seria fixo, e poderia variar de acordo tanto com as condições climáticas, como já acontece hoje em certa medida, quanto com tarifas diferenciadas por horário e com adesão pré-paga. Assim, as comercializadoras teriam liberdade para fazer ofertas.

Os consumidores varejistas serão atendidos por empresas comercializadoras, que deverão ter um produto padrão, com condições e valor definidos pela Aneel. Funcionaria como um pacote mínimo de banda larga que as empresas de telecomunicações precisam ofertar aos clientes.

De acordo com as comercializadoras, a falta de acesso não seria um problema. “Não se pode também menosprezar a capacidade de os consumidores fazerem opções, e de o poder de compra deles ser reconhecido por empresas locais”, diz Bernardo Sicsú, vice-presidente da Abraceel.

“Hoje, com o sistema quase inteiramente interligado, seria possível uma empresa geradora distribuir para estados distantes. Essas mudanças são perfeitamente possíveis com a estrutura existente”, afirma Rui Altieri, presidente da CCEE. Também colaboraria para esse processo mudanças nas regras da negociação de energia anunciadas pela Câmara, com mais rigidez para o cumprimento de contratos, por exemplo.

Apesar da possibilidade, não será obrigatório que os consumidores optem pelo novo esquema. Eles poderão manter contratos seguindo o modelo atual, com concessionárias distribuidoras. “O mais provável é que as essas empresas percam clientes, o que deve pressionar as operações e fazer os preços aumentarem. Isso prejudica consumidores que não tenham tantas opções”, avalia Brandão, da UFRJ.

Além disso, para evitar que consumidores rejeitados pelo mercado — por eventual risco empresarial, como inadimplência ou geografia — fiquem sem o serviço essencial, o Executivo deverá, segundo o PL, criar plano para garantir o “suprimento de última instância”, com as condições econômicas e financeiras para viabilizar a atividade. Segundo Brandão, essa ferramenta existe em outros mercados em que a abertura foi realizada e é essencial para o sistema. Também não haveria impeditivos para a continuidade da tarifa social.

Como em outros setores, as dinâmicas do mercado devem, em certa medida, ditar as condições em que o serviço será oferecido. Então é possível pensar que onde há maior demanda, como grandes centros urbanos, as condições serão distintas das encontradas em cenários menos vantajosos para as empresas, já que os consumidores varejistas dependem da disponibilidade de comercializadoras.

Compartilhamento de custos

A resiliência do sistema e a capacidade geradora de energia de atender a demanda por consumo continuará a ser manejada pelo Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS). Caso se observe que a geração contratada por comercializadores não dará conta do atendimento ou que a matriz está se tornando mais intensiva em carbono, por exemplo, é possível organizar um leilão de reserva de capacidade.

O primeiro leilão desse tipo aconteceu em dezembro, e gerou R$ 5,98 bilhões em investimentos privados de 17 usinas termelétricas a gás natural, diesel, óleo combustível e bagaço de cana para fornecimento a partir de 2026. Elas reservaram 4.632 MW. Em caso de crise de fornecimento, o governo aciona uma dessas térmicas, que deverá gerar a capacidade contratada, e o custo é rateado entre todos os consumidores, livres e cativos. Esse movimento faz parte do aquecimento que o governo vem fazendo para abertura do mercado.

“Com isso, ficou resolvido o temor de que o portfólio de renováveis poderia não ser capaz de atender toda a demanda e haveria um desbalanceamento. Agora, o maior entrave, que precisaria do marco legal, é que distribuidoras têm contratos de longo prazo. Esses custos precisam ser resolvidos com a possibilidade de rateio entre todo o sistema”, afirma Bezerra, da Ômega Energia.

Pelo projeto, o excesso de carga produzida contratada pelas distribuidoras na concessão dos serviços poderia ser comercializado ou haveria encargo tarifário proporcional ao consumo de energia elétrica, para o caso de o excedente não ser totalmente revendido. Entretanto, não está definido como isso aconteceria, o que depende de regulamentação.

A questão dos “contratos legados”, que são acordos de longo prazo, está entre as preocupações das atuais distribuidoras. “A abertura precisa ser ordenada pela eficiência, e não para evitar o pagamento de encargos e dos contratos legados, que muitas vezes incluem compras compulsórias. O PL 414/2021 solucionaria isso com o repasse a todos os consumidores”, diz Ricardo Brandão, presidente da Associação Brasileira de Distribuidores de Energia Elétrica (Abradee).

Segundo ele, as distribuidoras não são contrárias à abertura, desde que a transição seja feita de forma adequada — como a separação de tarifas e de comercializadoras e distribuidoras.

Redução de subsídios

Além de tratar da portabilidade da conta de luz, o PL 414/2021 prevê a redução de alguns subsídios do setor. Entre eles, os descontos no uso de sistemas de transmissão e distribuição que alguns empreendimentos têm direito.

Um exemplo é que, desde os leilões de 2016, concessionárias de geração energética que têm fonte solar, eólica, de biomassa têm direito à redução a partir de 50% nas tarifas de uso dos sistemas de transmissão e de distribuição, desde que a potência injetada varie de 30 MW a 300 MW.

O projeto, conforme foi aprovado no Senado, prevê que o beneficio deixaria de contemplar concessionárias que obtiverem outorgas para a geração após 12 meses, e também caso não iniciem as operações antes de 48 meses depois. Nos casos que ficarem de fora, subsídios para fontes energia de baixo carbono deverão ser baseados nos benefícios ambientais efetivos de cada matriz — plano com os detalhes será função do governo.

A Conta de Desenvolvimento Energético (CDE), fundo que custeia a tarifa social para a população vulnerável e também subsídios ao setor, somou R$ 23,9 bilhões, que são divididos pelo sistema — o rateio continuaria a ser feito entre todos os agentes em eventual abertura do mercado.

Para defensores da abertura do mercado, ela seria uma forma também de equalizar a saída de parte dos consumidores do mercado regulado para a geração distribuída. Por este sistema, eles são responsáveis pela instalação (de painéis solares, por exemplo), mas deixam de arcar com alguns custos que os consumidores cativos têm.

No início do ano, o presidente Jair Bolsonaro (PL) sancionou a Lei 14.300/2022, que trata da geração distribuída. Pelo texto, consumidores que já possuem sistema de geração distribuída permanecerão isentos de cobranças (tarifas de uso da rede e encargos) até o fim de 2045.  Há ainda uma janela de 12 meses para novos consumidores terem o benefício.

LETÍCIA PAIVA – Repórter em São Paulo, cobre Justiça e política no JOTA,

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