Curtailment: o fenômeno que ameaça a transição energética no Brasil

Embora seja reconhecido mundialmente como uma gigante em fontes renováveis, o Brasil está em pleno paradoxo energético com o curtailment. Esse corte de geração na produção de energia limpa, sobretudo a eólica e a solar, acontece quando o Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS) determina que usinas renováveis diminuam ou interrompam a geração de energia – mesmo que haja capacidade instalada e condições favoráveis para produção.
Ao longo dos últimos anos, esses cortes têm se tornado recorrentes no cenário brasileiro, principalmente desde 2022. A medida afeta especialmente regiões em que a oferta dessa matriz é vasta, como no Nordeste. Como consequência direta, os prejuízos do setor ameaçam o ritmo de crescimento desse que é um dos principais símbolos da industrialização verde e do desenvolvimento sustentável no país. De acordo com o relatório Energy, da PSR, somente em 2024 as perdas relacionadas ao curtailment acumulam cerca de R$ 650 milhões aos geradores renováveis.
Em março deste ano, o Ministério de Minas e Energia (MME) criou um Grupo de Trabalho para debater soluções para os cortes na geração de energia. O movimento – ainda que tímido – marca um pontapé inicial em busca de respostas para um problema que desafia a transição energética no país.
O que é curtailment?
O curtailment pode ser compreendido como uma situação em que a produção de energia limpa é desperdiçada. Mesmo que o sol e os ventos estejam favoráveis para a produção de energia, o sistema não consegue absorvê-la. Isso ocorre por limitações na rede de transmissão, falta de infraestrutura ou decisões operacionais. Dessa forma, há um potencial energético perdido, de forma a prejudicar os geradores e os usuários dessas fontes.
A Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) reconhece três principais causas para o curtailment: razão energética, requisitos de confiabilidade elétrica e indisponibilidade elétrica.
O curtailment começou a ser mais frequente no Brasil a partir de 2022. A razão energética ocorre quando a demanda do sistema é menor do que a oferta de energia disponível de geração com custo zero, por exemplo, quando há dias de muito vento ou muito sol, mas com baixa demanda de energia – como feriados ou durante a madrugada. Esse motivo tem se tornado mais frequente no contexto brasileiro, tendo acumulado cerca de 2.000 GWh de energia rejeitada em 2024, como apontam os dados do Energy Report
O corte de geração por confiabilidade elétrica, por sua vez, acontece quando há necessidade de garantir a segurança e estabilidade do sistema elétrico nacional – mesmo quando não há falhas nos equipamentos das usinas. Isso se relaciona às limitações sistêmicas ou locais, como a capacidade de intercâmbio entre regiões ou restrições nos equipamentos de transmissão.
Após apagão de 15 de agosto de 2023, que provocou o efeito dominó de apagão em 25 estados e no Distrito Federal, ocorreu por falhas em equipamentos de controle de tensão de usinas eólicas e solares no Nordeste. Após esse evento, o ONS passou a restringir o envio de energia do Nordeste ao Sudeste, que impactou no aumento significativo dessa modalidade de redução de geração. Ano passado, esse tipo de corte correspondeu a 64% da energia que deixou de ser utilizada no país.
“A opção do ONS tem sido desligar as usinas renováveis do Nordeste, mesmo com contratos de fornecimento em vigor. Isso tem gerado um problema econômico enorme, desestimulando novos investimentos”, diz Rodrigo Mello, diretor do Senai do Rio Grande do Norte (Senai-RN) e do Instituto Senai de Inovação em Energias Renováveis (ISI-ER).
“Uma empresa da região chegou a registrar curtailment de 70%. Imagine produzir o ano inteiro e só poder entregar energia em três meses. Quem paga a conta nos outros nove?”, questiona Mello.
Já o curtailment por indisponibilidade externa diz respeito a falhas ou manutenções em estruturas de transmissão fora dessas usinas geradoras, de maneira a impedir o escoamento da energia. Há parques eólicos localizados em municípios nordestinos prontos para gerar energia, no entanto, há uma falta de rede suficiente nas linhas de transmissão para enviá-la a outras regiões do país, como ao Sudeste.
Diferentemente das outras duas causas, esse tipo de corte é o único a prever algum ressarcimento ao gerador. Em 2024, 11% da energia rejeitada pelo sistema teve esse motivo como causa. “O curtailment tem sido usado como ferramenta de gestão simplista, priorizando o que é mais conveniente despachar no momento, sem considerar impactos econômicos, sociais e ambientais”, opina o diretor do Senai-RN.
O papel dos órgãos do setor
A governança do setor elétrico brasileiro está formalmente dividida entre o MME, responsável pela formulação da política energética; a Aneel, enquanto agência reguladora; e o ONS, encarregado da operação do sistema. No entanto, as críticas à forma como o país tem lidado com o fenômeno recaem sobre a própria engrenagem institucional do setor.
A falta de articulação entre os responsáveis contribuiu para o agravamento dos episódios de curtailment, embora tenham tido alertas prévios por parte de especialistas e associados ao setor. “Apesar do procedimento estar previsto nos contratos, não havia precedente histórico para os volumes atuais de curtailment. Mesmo com os alertas desde 2023, houve pouco avanço para desenvolver ações técnicas de mitigação ou para expandir a infraestrutura de transmissão necessária”, afirma Darlan Santos, diretor-presidente do Centro de Estratégias em Recursos Naturais e Energia (Cerne).
O parlamentar ainda destaca a necessidade de uma força-tarefa nacional para destravar a infraestrutura de escoamento e acelerar a regulamentação de tecnologias como o armazenamento de energia. “O Nordeste tem sido protagonista da transição energética brasileira e não pode ser penalizado por falhas no planejamento público”, completa.
O recorrente curtailment também afeta as políticas públicas que têm as energias renováveis como mote principal, como a interiorização do desenvolvimento e a industrialização verde. Essa insegurança limita a instalação de novas fábricas, o surgimento de polos tecnológicos e o fortalecimento de cadeias produtivas regionais.
“Isso afeta a geração de emprego e renda, a qualificação de mão de obra local e a atração de novos investimentos para o semiárido. Prejudica ainda a segurança energética nacional ao reduzir a previsibilidade e a competitividade das fontes limpas”, alerta o deputado. A estagnação reflete principalmente na população que vive no interior dos estados, que dependem das fontes renováveis para transformação econômica e social.
Além disso, os especialistas também pontuam o reflexo no esvaziamento do pipeline de projetos. Atualmente não há previsão da entrada de novas usinas eólicas ou solares no mercado brasileiro para 2026. Para eles, esse é um sinal de alerta para o risco de desmobilização do setor.
O diretor-presidente do Cerne, Darlan Santos, chama atenção para os impactos em toda a cadeia produtiva: fabricantes de aerogeradores, fornecedores de componentes e operadores logísticos são afetados pela interrupção de novos investimentos.
Fonte: Jota